ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira reapareceu e muito bem acompanhada. Acompanhem.

"Alôzinho, minha amiga! Sumí, mas voltei.É que tinha muito trabalho por aqui, pelas bases. Lá na Assembléia Popular eu encontrei o Nonato Daniel, que o pessoal chama de Daniel, O Pensador.O homem é bom de pensamento!Aí eu convidei ele pra vir aqui na comunidade. O pessoal das bases tão precisando muito de uma reflexãozinha. Passamos uma temporada viajando por aí, até nos grotões.Aí eu resolvi trazer ele pra você entrevistar.Chegue aqui, Nonato Daniel, no telefone!

A Fala - Boa tarde sêo Nonato Daniel! A Valdenira me contou que você  é um pensador...

Daniel, o Pensador - Boa tarde, minha senhora! Na verdade eu me tornei um pensador. Pelas necessidades da vida e das circunstâncias. Sempre gostei muito de refletir sobre as coisas da vida, e lá na comunidade em que eu nasci e cresci o pessoal tinha muitos problemas pra resolver, mas não tinha como encaminhar. E como viam que eu lia muito e refletia muito, começaram a vir me pedir conselho. Depois de um tempo, as pessoas já me encaminhavam alguém que tinha um problema pra resolver e não sabia como.

A Fala -  E que tipo de problemas?

Daniel, o Pensador - Todo tipo: problema na família, problema de dinheiro, problema de trabalho, problema de amor...E ultimamente os problemas dos movimentos sociais.

A Fala - Mas são problemas muito diferentes. Como você consegue refletir sobre todos?

Daniel, O Pensador - É...Aparentemente são diferentes, mas tem uma base igual, pois diz respeito ao ser humano. E no ser humano tem duas qualidades, que não podemos esquecer, e que está em tudo o que ele faz: todo pensamento tem sentimento e todo sentimento tem pensamento. Se a gente pensar nessa formulazinha os problemas vão estar meio caminho andado. Quando alguém me procura pra conversar vou logo dizendo: imagine que você está num carro. Preste atenção num ponto importante, o carro tem várias marchas e um ponto morto (ponto neutro). Quando você coloca o ponto morto ou neutro você tem uma quantidade de possibilidades: ir pra frente, ir pra trás, ir mais rápido, ir mais devagar e assim por diante.Você nunca tem só um caminho, mas vários, se você conseguir se colocar em um ponto morto. Se você deixa de pensar que só tem problemas e limites, mas também tem muitas possibilidades e pode fazer escolhas, você começa a tomar conta do seu destino. Pega o seu destino pelas mãos. E essa é uma questão básica pra todo ser humano e para todo ajuntamento dele. Não interessa em que tipo de carro, carroça ou trem você está. Interessa que é você quem o dirige.

A Fala - Mas quando os sentimentos e as emoções são mais fortes...Como fica?

Daniel, O Pensador - Como eu já disse, todo sentimento tem pensamento, e às vezes está só esperando para ser ativado. As desilusões da vida causam muito amargor, mas a compreensão dos problemas da vida vai tornando a vida menos amarga e o ser humano mais sábio. Quando alguém me procura com muito sofrimento eu digo: se precisar chorar, chore. Chorar faz bem, e das lágrimas podem se formar dois rios que se transformam em novos caminhos. Mas não deixe de tentar compreender por que chora, mas não deixe de perguntar que mensagem pra você traz esse sofrimento. E quando você faz isso está ativando o pensamento que existe em todo sentimento.

A Fala - E em relação aos movimentos sociais como fica essa questão?

Daniel, O Pensador - Os movimentos sociais são feitos por seres humanos. E pra não entrar em muitas teorizações que muitas vezes levam a uma verdadeira Torre de Babel, de desentendimento, eu prefiro ir pelo pensamento simples. A simplicidade faz falta quando queremos construir alguma coisa. Eu já disse em vários encontros e reuniões de movimentos sociais, que um movimento social, seja ele qual for, é como uma família de seres humanos. E pra começar, os modelos de famílias que nós temos em nossas sociedades nem sempre são os melhores. Tem famílias que são como um ninho, mas tem uma grande parte de família que são como um ninho de cobras. É só ver a quantidade de crianças que preferem as ruas a  ficar em casa com os pais; é só ver o monte de denúncias de mulheres espancadas e violentadas em suas próprias casas pelos maridos ou parentes; é só ver a quantidade de pessoas que carregam as famílias como um peso nas costas, por serem os "bodes expiatórios" e, portanto, vítimas dos maltratos de famílias doentes e disfuncionais. Falta amor. E onde falta o amor vigora a lei do poder, do mais forte, do autoritarismo, da competição e do salve-se quem puder.

A Fala - E de que forma isso afeta os movimentos sociais?

Daniel, O Pensador - Afeta, pelo menos, de duas formas:uma, que aquilo que se aprende em família se leva pra qualquer lugar, a não ser que se passe um bom tempo refletindo  e sofrendo as mazelas dessa aprendizagem, que aliás afeta o pensamento e o sentimento. E a outra que se os movimentos sociais forem o reflexo desse tipo de família de cobra, muito pouca gente vai querer se encostar por aí. Porque em "ninho de cobra" alguém pode até nascer, mas não vai querer escolher um pra viver.

A Fala - Mas, a formação dos movimentos sociais não  se deve aos problemas gerados pelo sistema, que exclui as pessoas e as transforma em minorias? Não são de um sistema que não dá vez e voz para essa pessoas?

Daniel, O Pensador - Pode até ser, já que o sistema é feito de correntes fortes que vão devorando as margens e assoreando os rios de todos nós. Mas os movimentos sociais para cumprir seus verdadeiros objetivos de transformação da sociedade e resistir a essas correntes do sistema, deveriam ser células fortes onde o ser humano poderia ser um elo, e portanto, deveriam se constituir em ninhos de acolhimento. Mas a competição, as brigas ideológicas e a transformação de muitos movimentos em feudos acabam sendo uma reprodução desse tipo de família que eu já citei. E passando para o terreno da cultura política, ainda vigora também o coronelismo disfarçado,  e os movimentos se tornam abrigo para muitos "galinhos de terreiro de coronel", que exercem seu poder aí, enquanto não conquistam outras esferas da sociedade, que lhe dêem mais poder, dinheiro e notoriedade. E aí voltamos à questão inicial: o que essa pessoa traz desde sua formação, no pensamento e sentimento, a noção de poder em detrimento do amor, que está arraigado na constituição de sua personalidade. Os movimentos sociais se querem realmente lutar pela transformação da realidade devem se preocupar em ser famílias que ajudem a gerar um novo ser humano.

A Fala - Mas, Daniel, você acha então que não se deve lutar contra a discriminação dos índios, dos negros, das mulheres, dos pobres e de todos os discriminados dessa sociedade e sistema?

Daniel, O Pensador - Eu acho que se deve lutar sim, e denunciar também todas as discriminações. Mas a forma de luta é que tem que ser bem pensada e bem sentida. É necessário acabar com o opressor que existe dentro de cada um também, com o recalque, senão a luta não prospera, e vamos estar lutando contra uma parte de nós mesmos. Quando alguém me procura com raiva porque foi discriminado eu aconselho sempre: Se dizem que você é um negro safado, não responda como negro, responda como pessoa; se lhe tratam como uma mulherzinha, não responda como mulher, responda como pessoa; se lhe tratam como um índio selvagem, responda como pessoa; se lhe tratam como um pobre coitado, responda como uma pessoa...

A Fala - Então, você acha que as pessoas não devem reconhecer e se orgulhar de ser o que são: negros, índios, mulheres, etc?

Daniel, O Pensador -Alguém que se sente pessoa e se reconhece pessoa é capaz de ser exatamente o que é, sem problema, mas jamais será somente um pequeno fragmento que a sociedade e cultura utiliza para colocá-los em um determinado lugar. Ser pessoa é recuperar sua integridade e o direito de ser, de dirigir sua própria vida, e isso não se consegue simplesmente lutando contra o governo e instituições, ainda que essa luta seja importante. É necessário encontrar outras mediações. É necessário que essas células que são os movimentos sociais abram também espaço para se discutir que tipo de ser humano somos e aquilo que queremos ser para essa sociedade que se almeja. E não só no discurso, pois existe muito discurso bonito por aí, mas na hora da ação...Trabalhando o sentimento e o pensamento se vai em frente, pois quando um falha o outro tropeça. Essa é a nossa direção.

A Fala - E o que você pensa da Assembléia Popular?

Daniel, O Pensador - A Assembléia Popular é o carro dos movimentos sociais. E é nesse carro que os movimentos sociais têm que buscar o ponto morto, das mil possibilidades e perspectivas, pra poderem passar as marchas certas e serem donos de seu próprio destino. E também para poderem encontrar o ponto de equilíbrio e resolução dos conflitos. Se isso acontecer  de verdade a Assembléia Popular pode se tornar o carro chefe de muitas mudanças no Brasil.

A Fala - Sêo Nonato Daniel, que mensagem você deixa para os leitores de A Fala?

Daniel, O Pensador - Queria deixar a mensagem de que o Amor não exclui a reflexão e a Reflexão não exclui o amor. Sem a reflexão somos cegos no coração e sem o amor somos coxos na ação. Se quisermos pegar nosso destino em nossas mãos essa é uma mensagem pra se considerar. A outra é que em todo movimento deve se buscar o ponto morto (neutro) para se ter acesso às mil possibilidades, e para poder se considerar os conflitos de outras perspectivas.

A Fala - Obrigada, sêo Nonato Daniel. É bom saber que os movimentos sociais no Brasil podem contar com bons pensadores como você. Passe-me a Valdenira, no telefone.

Valdenira - Minha amiga, o homem é  dos bons, né mesmo? Nessa história toda eu aprendi e saí repetindo: Querem aprender um bom caminho pra mudar a situação das coisas? É só abraçar o arco-iris. Rá,rá,rá. Não tem erro! Tchauzinho, minha amiga!

A Fala- Tchauzinho, Valdenira! E obrigada por mais essa contribuição! Avante!

 
21/03/2006
Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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