ZOANDO NA CAATINGA

A VOZ DE VALDENIRA


Valdenira é uma paraibana do semi-árido, vivendo na confluência de vários Estados. Ela é da base da base. Não tem computador e me telefona sempre para dar notícias e falar suas impressões sobre muitos assuntos que afetam os brasileiros da caatinga e de todo o país. Coloco aqui sua fala e discuto com ela suas idéias, às vezes muito radicais e críticas, mas quase sempre cheias de razão e divertidas. Acompanhe.

Valdenira chegou com novidades. Quem disse que babado é bico? E nem todo ser humano é natural, também.

"Alôzinho, minha amiga! Agora eu vou lhe contar a palestra do transgênico. O pessoal da comunidade fez uma fogueira  e levaram batata doce da boa, milho verde e modubim (amendoim) com um cauim, feito de mandioca, que era pra animar as conversas. Aí deram a palavra pro Nonato Daniel.Ele com aquela voz calma começou a explicar a história:

 "Uma das primeiras perguntas que nós temos que fazer sobre os transgênicos é por que ele existe? A segunda é por que todo esse forrobodó no meio dos movimentos sociais, contra a sua utilização no Brasil e em vários lugares do mundo?Tudo começou, na verdade, quando o ser humano começou a adquirir a capacidade de se desidentificar da natureza. Pareceu ao ser humano que para seu próprio desenvolvimento tinha que aprender a superar as pragas, as doenças da natureza, a dependência tremenda que ele tinha de todos esses elementos que lhe atemorizavam. A natureza merecia reverência, nada podia ser feito sem consultá-la, ou aos deuses e espíritos da natureza. Então, ele foi aprendendo a pensar sobre si mesmo e adquirindo razão. Um outro tipo de conhecimento fora da natureza. Das criaturas viventes só os humanos adquiriram a habilidade de pensar com a razão."

"E durante muito tempo, o ser humano foi adquirindo mais e mais conhecimento com a razão e submetendo a natureza e aquilo que pareceu a ele seus caprichos, suas intempéries, sua dominação. A ciência foi descoberta e com ela uma quantidade de especialidades e tecnologias para melhorar e prolongar a vida dos seres humanos. Cidades com prédios altos foram construídos,tornando as cidades cinzas, combustíveis que criaram navios para navegar nos mares, carros e trens para transportar nas cidades e estradas, aviões que hoje já entopem o espaço aéreo das grandes cidades, e remédios, cirurgias de alto nível, como os transplantes e por aí vai.O grande conhecimento do ser humano através do uso da razão fez com ele se tornasse mais sabido, mais independente da natureza, mas também mais prepotente. Achando que podia mudar tudo e alterar toda a ordem da natureza. Mas como ele perdeu o contato que tinha antes com a natureza, não tinha mais condições de entender os seus sinais, nem de saber que o que estava fazendo estava causando tremendo desequilíbrio para a terra e os seres humanos e começou a fazer inventos que cedo ou tarde podem destruí-la."

"Hoje nós temos um tremendo desequilíbrio da natureza, nosso planeta corre riscos e nós também, pois somos parte dele.Mas o ser humano, não satisfeito começou a alterar os códigos genéticos e a criar vida de forma quase artificial, nos laboratórios. Mas, de uma forma estranha e irresponsável, por propagar seus inventos de forma massiva, sem saber ainda os males que podem causar. Os milhos e as sojas transgênicas, pra dar um exemplo,são grandes, nutridos e bonitos, mas não se sabe os resultados nos nossos organismos, e as abelhas levam seu pólen disseminando-a para vastas áreas. E além disso, juntou tudo com as tais patentes dos inventos, que é pra subjugar os produtores. O sistema infernal, através das transnacionais, e a ganância pelo lucro comandam esses  desastres da natureza. O pequeno produtor sai perdendo, os índios e os que são ligados à terra também, e os movimentos sociais que defendem o pequeno produtor, os índios e os quilombolas, não podem ficar impassíveis diante disso. Chegou a um ponto no planeta que a vida corre perigo. O ser humano está buscando seu extermínio. Os movimentos sociais querem dar um basta nessa situação. Essa é a resposta para as duas perguntas que eu fiz no começo."

"Minha amiga,aí uma pessoa lá falou que agora tinha uns doutores da natureza. Um pessoal que estudava a natureza e estava dando palestras e aulas por aí. E convidando todo mundo pra salvar a natureza. E o Nonato Daniel falou que era bom fazer movimento pra salvar a natureza, mas um dos grandes problemas que ele via é que muitos desses tais doutores da natureza não sabiam o que era natureza, e ficavam querendo colocar regra pra tudo e ainda se sentindo os tais. Muitas vezes negando os saberes ancestrais do povo ligado à natureza. E uma das coisas que chamava a atenção nesse tipo de doutor é que eles diziam que somos todos iguais, gente, planta e animal. Eu até fiquei pensando, minha amiga, com essa história, em votar nas próximas eleições pra um "pé de arruda", porque se é tudo igual não vai fazer diferença, e também estou cansada de votar em político ruim, que é só o que tem  hoje nesse Brasil.Se num servir de nada, pelo menos o pé de arruda tira mal-olhado e inveja."

"Mas aí o pessoal quis saber mais dessa história dos doutores da natureza. Aí ele explicou:A primeira coisa errada dessa história é que ninguém precisa ser doutor formado pra entender a natureza, pois a natureza é muito diferente do mundo do ser humano "civilizado". Pra se civilizar, grande parte dos seres humanos perderam o contato com a natureza. Eu digo sempre pra esses tipos que vivem exibindo o título de doutor em natureza: Olhe, imagine que você viajou para uma floresta africana para sentir a natureza bem forte e estar em contato direto com a natureza. Lá, quando você encontrar um tigre de bengala, você acha que ele vai pedir o seu currículo? Não, primeiro ele faz nhac... e lhe come. Depois, e se ele tiver interesse, é que vai procurar saber se você é doutor ou não, pra saber a importância da sua comida."

"E continuou: Em outras palavras, o que eu quero dizer é que esses parâmetros de civilizado, como título de doutor, e tantos outros, não têm muita importância no mundo da natureza. E quem ainda usa isso como justificativa e desculpa para o que faz, é porque não empreendeu ainda a verdadeira volta necessária à sua própria natureza, e em grande parte das vezes não é um doutor da natureza, mas um charlatão da natureza, não conhece as verdadeiras regras da natureza. Conhece as regras do mercado, e do seu próprio bolso,que vai ficar cheio com as palestras mentirosas que faz sobre a natureza que não conhece, de fato. Quem quer conhecer a natureza, tem que ser mais humilde, se dobrar sobre si mesmo e tentar se conhecer muito, até chegar à sua natureza humana. Aí vai saber que não é igual nem à planta, nem à animal irracional, nem à mineral. São todos diferentes e importantes para o equilíbrio da vida. Ninguém precisa ser igual a outro, ou outra espécie, para ser respeitado. Mas, isso só se descobre sabendo realmente aquilo que se é. Chegando à sua verdadeira natureza, você pode ter verdadeiramente o ponto de partida para conhecer as outras naturezas :de outro ser humano, plantas, animais e minerais, com os quais todos interagimos e dividimos a vida e o equilíbrio da vida no planeta.

"O contato real com a natureza nos ensina a  ser humildes, a reverenciá-la. Mas se ocorrer o contrário, e alguém se encher de conhecimentos de livros, ditos e filosofias sobre a natureza e não encontrar sua verdadeira natureza, vai se inflacionar  como um balão ou como um milho transgênico, que por fora, é cheio de currículo e palavreado bonito, mas por dentro artificial e nem um pouco confiável. Disseram, por aí, que esse século xxi seria o século da grande descoberta do ser humano, um novo ser humano, transformado para viver uma nova era. Mas se esse ser humano não conseguir encontrar sua verdadeira natureza e se preocupar só em ter currículo,em posar de doutor, e parecer bem nutrido e apreciável por fora, vai ser um ser humano transgênico. O ser humano natural e transformado para a Nova Era, Era esta, que já estamos atravessando o umbral, vai escassear e ficar raro."

Minha amiga, depois dessa, o pessoal ficou assim meio nervoso. Cada um colocando o problema pra si, e caíram encima do milho e da batata doce. Já via que num ia sobrar nada. Aí eu disse assim: Calma pessoal, vocês estão querendo inchar e se transformar em ser humano transgênico?

"Depois o Nonato Daniel falou - mas nem queria muito que a gente contasse essas coisas por aí - que a gente já estava começando a viver essa nova era e que a natureza ia exigir muito de todos nós. É aquela história: Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai à Maomé. Mesmo que a gente não queira, a natureza vai fazer uma forcinha pra se aproximar da gente, senão o desequilíbrio acaba com tudo. Será que o ser humano pensa que é só ele que não quer se acabar? É não. Os outros seres viventes também querem viver e vão lutar pra isso. Por isso é bom se preparar.Eu lembrei pra ele que quando a gente era criança, na escola, mandavam a gente deixar um lugarzinho pro anjo da guarda sentar, pra fazer companhia pra gente e pra proteger, e ele respondeu: Pois de agora em diante, é bom dizer para as criancinhas deixarem dois lugares, de um lado pro anjinho e do outro para os espíritos da natureza. Só o anjinho não vai mais dar conta do recado."

"Minha amiga, a palestra foi séria. O pessoal deixou até o Santo Antonio de lado. Acho mesmo que vão acabar é tendo pesadelo com o fim do mundo. Mas é melhor ter pesadelo agora, do que se arrepender depois, quando não tiver mais remédio. Minha amiga, eu já vou. Estamos fazendo umas brincadeiras de junho, uma quadrilhas com a meninada. Todo mundo vestido de milho, verde e amarelo, por causa da Copa. É a quadrilha dos transgênicos. Tem uma faixa assim: Respeite (su)a natureza, para não ser um ser humano transgênico. Té loguinho, depois lhe conto mais.

-Té logo, Valdenira! Hasta la naturaleza siempre!

 
21/06/2006
Colunista: Verônica M.Mapurunga de Miranda
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